É possível haver idolatria no meio do povo de Deus? Infelizmente, sim — e ela não se apresenta como a maioria imagina. Talvez você pense: “Mas nas igrejas evangélicas não há imagens... então como pode haver idolatria?”. Para responder, começo com um episódio que vivi há alguns anos, ainda novo na fé, dentro de uma livraria de uma conhecida denominação.
Recém-convertido, apaixonado por louvar a Deus — dom que até hoje agradeço — fui até Ribeirão Preto comprar alguns playbacks originais (nada de pirataria, claro). A livraria, ligada a uma igreja, estava cheia. Enquanto muitos olhavam CDs, livros e materiais devocionais, fui direto para a seção de música. Escolhi meus CDs e fui ao caixa, mas o que aconteceu em seguida me chocou.
Era o horário do programa de rádio do líder da denominação. A atendente do caixa me pediu licença e, com uma expressão quase sagrada, disse: “Preciso ouvir o elilim (deusinho) falar.” Vi todos os funcionários abandonarem seus postos só para ouvir um homem... como se fosse o próprio Deus. Ali, percebi: a idolatria gospel existe — e tem nome, voz e microfone.
Foi meu primeiro contato com um tipo de idolatria que não se curva diante de imagens, mas diante de pessoas. Como vim de um contexto católico, onde a idolatria é visual e evidente, fiquei confuso. Com o tempo, entendi: o que vi era um retrato nítido de algo que muitos ignoram — a idolatria evangélica é real, silenciosa e devastadora.
Mas o que é, afinal, idolatria?
Segundo Claudionor de Andrade, é a adoração de ídolos — mas também é qualquer amor que suplanta o amor que se deve a Deus. A Bíblia de Almeida define como qualquer imagem adorada, mesmo que represente o Deus verdadeiro (Êx 20.3-6). Orlando Boyer vai além e diz: ídolo é tudo que se torna objeto de culto — seja coisa, pessoa ou até uma ideia.
No Antigo Testamento, a fé era altar e oração, não imagem. Deus fez questão de proibir qualquer forma que pudesse ser corrompida (Dt 4.12). Os profetas, como Ezequiel, ridicularizavam os ídolos chamando-os de “gilulim” — uma palavra rude que, segundo o léxico hebraico, remete a montes de excremento.
No Novo Testamento, a definição se amplia: idolatria não é só imagem, mas também cobiça (Cl 3.5), imoralidade (Gl 5.19-20), e qualquer coisa que roube nossa atenção de Deus (1Jo 5.21). Em suma: ídolo é tudo aquilo que exige lealdade no lugar d’Aquele que é o único digno (Is 42.8).
Você já se perguntou por que Deus não permitiu que ninguém soubesse onde Moisés foi sepultado? A Bíblia diz que o próprio Deus o enterrou (Dt 34.6), e Judas revela que houve até disputa espiritual pelo corpo dele (Jd 1.9). Por quê? MacArthur e Matthew Henry sugerem: Satanás queria transformar o corpo de Moisés em objeto de adoração. Deus, sabendo do perigo, escondeu o corpo para preservar o coração do povo.
A idolatria é sorrateira. E no episódio que testemunhei, vi com meus próprios olhos o povo se curvando, não diante de uma imagem, mas de um homem. E o mais trágico: mesmo após escândalos e contradições, ele ainda é reverenciado como um “semi-deus”. Isso não é caso isolado. Pastores, pregadores, cantores, mestres... todos sujeitos a serem idolatrados — ou a gostarem de sê-lo.
Hoje, a idolatria virou show. Igrejas pagam verdadeiras fortunas para ter seus “ídolos” no púlpito. Alguns exigem cachês como artistas. Desculpe, mas não consigo chamar isso de ministério. Isso é mercado. São mercadores da fé.
Cornélio se ajoelhou diante de Pedro, e Pedro o repreendeu: “Levanta-te, que eu também sou homem!” (At 10.26). Se Pedro vivesse hoje, talvez ficasse chocado com o tanto de “adoradores de celebridades gospel” que confundem carisma com unção.
Sinto ira (santa, que fique claro) ao ver cantores seculares vestidos de “gospel” em programas de TV, onde o evangelho não é pregado — mas onde os gritos histéricos de fãs substituem o culto. Ganham aplausos dos homens, mas não dos céus. Enquanto isso, os irmãos simples, que louvam com coração puro, são invisíveis na terra, mas conhecidos no céu.
As igrejas lotam para ouvir o “Fulano de Tal”, mas esvaziam nos cultos de ensino. Apóstolos modernos ensinam crentes a "brigar com Deus", como se isso fosse espiritualidade. Enquanto isso, o evangelho é vendido, e o povo se distrai com fumaça e luz.
Tomara que quando esses “elihim” morrerem, sejam cremados e suas cinzas lançadas ao vento. Pelo menos assim, não teremos relíquias para idolatrar.
Uma última pergunta: você viu o nome de Jesus nesse texto até agora? Não? Fiz de propósito. Quis mostrar como, quando o foco está no homem, Cristo some da cena. E é isso que tem acontecido. Os holofotes estão tão voltados para os “ídolos gospel” que já não sobra espaço para o verdadeiro Senhor.
Finalizo com João, simples e direto como sempre:
“Filhinhos, guardai-vos dos ídolos. Amém.” (1 João 5:21)